Fonte: CONJUR
Na coluna de hoje abordaremos um tema que, embora pragmaticamente seja mais comumente debatido no âmbito da 3ª Seção de julgamento do Carf, também pode, ao menos em tese, ser discutido nas demais Seções daquele Tribunal administrativo. É a possibilidade ou não de validar compensações realizadas com base em ações judiciais individuais sem trânsito em julgado, mas em sintonia com precedentes judiciais vinculantes.
Para a devida compreensão do tema, convém neste momento convém contextualizar a evolução legislativa para tal questão. Nesse sentido, o CTN prevê que a compensação é modalidade de extinção do crédito tributário, nos termos do seu art. 156, inciso II[1]. Não obstante, em sua redação original, o citado Codex não previa impedimento para que compensações tributárias fossem realizadas com base em tutelas judiciais de caráter precário, i.e., com base em tutelas antecipadas.
Diante deste quadro, inúmeros contribuintes promoviam ações judiciais vindicando tais tutelas precárias que, uma vez concedidas, implicavam a extinção do crédito tributário compensado, o que, por sua vez, poderia gerar problemas de difícil solução, em especial na hipótese da tutela provisória concedida ser ulteriormente revertida, já que a compensação perpetrada não poderia mais ser desfeita, competindo ao fisco promover as medidas judiciais cabíveis para a perseguição do débito tributário extinto por indevida compensação.
Ante os problemas daí decorrentes, o legislador nacional, por intermédio da lei complementar n. 104/2001, inseriu no CTN o seu art. 170-A[2], que passou a vedar a compensação de tributos com base em créditos discutidos judicialmente e pendentes de trânsito em julgado. Em sintonia com tal dispositivo, a lei n. 11.051/04 inseriu a alínea “d” ao inciso II do § 12 do seu art. 74[3], que passou a tratar eventuais compensações embasadas em créditos decorrentes de decisões judiciais não transitadas em julgado como não declaradas.
Logo após a tais alterações legislativas, os precedentes do Carf eram todos no sentido de vedar a compensação realizada com base em decisão judicial pendente de julgamento, conforme se observa, .v.g., dos seguintes acórdãos: 3202-000.508; 3101-000.870; 3802-001.131. A única exceção era para a hipótese de decisões judiciais decorrentes da propositura de ações judiciais anteriores a inserção do art. 170-A do CTN, ou seja, anteriores a lei complementar n. 104, de 2001. Nesse sentido é o teor do acórdão Carf n. 9303008.227, o qual está em sintonia com precedente do STJ veiculado em sede de recurso especial julgado sob o rito de repetitivo (REsp n. 1.164.452/MG)
Importante destacar, todavia, que no contexto histórico em que surgiram tais alterações legislativas e, por conseguinte, os citados precedentes do Carf, a discussão quanto ao efeito transubjetivo de decisões judiciais individuais ainda era incipiente. Em verdade, a discussão quanto o caráter vinculante e erga omnes de decisões judiciais ficavam praticamente restritas às hipóteses de controle concentrado de constitucionalidade, com uma discussão ainda preliminar quanto à possibilidade tais efeitos também incidirem na hipótese de controle difuso independentemente de resolução do Senado Federal.
Acontece que, nas últimas décadas, foram promovidas várias alterações legislativas[4] no sentido de pretensamente aproximar o sistema jurídico nacional, tipicamente demarcado pelos conceitos do civil Law, para um modelo de fortalecimento de precedentes, ou seja, para um modelo similar àqueles oriundos da família do common Law[5]. Foi dentro deste novo contexto que contribuintes pleitearam compensações de créditos ainda discutidos judicialmente de forma individual e sem trânsito em julgado, mas com sintonia com o que fora decidido em casos tratados como precedentes vinculantes. É essa a discussão que hoje chega ao Carf.
Dentro deste novo cenário é possível encontrar algumas decisões de turmas de câmara baixa no sentido de vaticinar a literalidade do disposto no art. 170-A do CTN. É o caso, por exemplo, dos acórdãos Carf n. 3401-005.947 e 2402-007.236. Em suma, tais acórdãos pautam-se pela literalidade do disposto no art. 170-A do CTN, reclamando, pois, a existência de uma decisão individual e concreta transitada em julgado para fins de garantir a homologação da compensação perpetrada.
Por sua vez, o acórdão Carf n. 3402.005.025 vai em sentido diametralmente oposto a tal entendimento. Neste julgado[6] o contribuinte promoveu, em 2003, pedido de compensação tendo por pano de fundo a discussão quanto ao alargamento da base de cálculo do PIS e da COFINS veiculada pela lei 9.718/99. Em 2005 adveio precedente vinculante do STF externado em recurso extraordinário com repercussão geral (RE 357.950), vaticinando a tese defendida pelos contribuintes. Em 2008 adveio despacho denegatório do pedido do contribuinte, com base no art. 170-A do CTN. Por sua vez, a ação judicial individual do contribuinte transitou em julgado, em seu favor, apenas em 2012, vindo o seu recurso voluntário (no processo administrativo) a ser julgado no Carf em 2018. Naquela oportunidade assim decidiu o citado Tribunal administrativo, por unanimidade de votos:
Ementa:
PIS/COFINS. BASE DE CÁLCULO. INCONSTITUCIONALIDADE DO § 1º DO ARTIGO 3º, DA LEI Nº 9.718/98, QUE AMPLIAVA O CONCEITO DE FATURAMENTO. NÃO INCIDÊNCIA DA CONTRIBUIÇÃO SOBRE RECEITAS NÃO COMPREENDIDAS NO CONCEITO DE FATURAMENTO ESTABELECIDO PELA CONSTITUIÇÃO FEDERAL PREVIAMENTE À PUBLICAÇÃO DA EC Nº 20/98.
(…).
COMPENSAÇÃO. PEDIDO REALIZADO ANTES DO TRÂNSITO EM JULGADO EM FAVOR DO CONTRIBUINTE. QUESTÃO DE CONTEÚDO QUE DEVE SE SOBREPOR À FORMA. PREVALÊNCIA DA RATIO DECIDENDI DE PRECEDENTE PRETORIANO DE CARÁTER VINCULANTE COM A ADEQUAÇÃO DO DISPOSTO NO ART. 170-A DO CTN.
Embora o pedido de compensação perpetrado pelo contribuinte tenha se contraposto à literalidade do art. 170-A do CTN, ao final do processamento judicial a lide por ele proposta foi julgada procedente, com base em precedente vinculante do STF. (RE n. 357.950) o que, por sua vez, faz convocar em seu favor o disposto nos artigos 489, § 1o, inciso VI, 926 e s.s., todos do CPC/2015, bem como o disposto no art. 62, § 1º, inciso II, alínea “b” do RICARF e, ainda, ao prescrito no art. 2o, inciso V da Portaria PGFN n. 502/2016.
Recurso voluntário provido para sujeitar a Administração Pública ao precedente vinculante do STF (RE n. 357.950). Pedido de compensação a ser analisado pela instância competente apenas para fins de apuração quanto a adequação do montante compensado.
Segundo tal precedente, a análise quanto à incidência do art. 170-A do CTN não pode mais ser feita de forma divorciada do atual contexto histórico do sistema jurídico nacional, i.e., de valorização de precedentes como fonte material de direito e, por conseguinte, como fomentador de expectativas jurídicas. Ademais, também foi ponderado que a aplicação automática do art. 170-A do CTN neste caso específico redundaria em uma provável judicialização da controvérsia, o que se contrapõe a ideia do processo administrativo tributário: a de evitar a judicialização de demandas.
Percebe-se, pois, que diante do novo cenário jurídico vigente, de aproximação do nosso sistema a um modelo de stare decisis, uma nova discussão (com um novo olhar) deve ser travada no Carf acerca da amplitude da incidência do art. 170-A do CTN, o que ainda dará margem para interessantes discussões no âmbito daquele Tribunal administrativo.
*Este texto não reflete a posição institucional do Carf, mas, sim, uma análise de seus precedentes publicados no site do órgão, em estudo descritivo, de caráter informativo, promovido por seus colunistas.
[1] Art. 156. Extinguem o crédito tributário:
(…).
II – a compensação;
(…).
[2] Art. 170-A. É vedada a compensação mediante o aproveitamento de tributo, objeto de contestação judicial pelo sujeito passivo, antes do trânsito em julgado da respectiva decisão judicial.
[3] Art. 74 (…)
§ 12. Será considerada não declarada a compensação nas hipóteses
(…).
II – em que o crédito:
(…).
d) seja decorrente de decisão judicial não transitada em julgado; ou
(…).
[4] A Emenda Constitucional n. 45/04 e institutos como súmula vinculante, repercussão geral e recursos repetitivos são exemplos disso. Mais recentemente, destacamos a tutela provisória de evidência estampada no art. 311, inciso II do CPC.
[5] Para uma análise crítica do tema: RIBEIRO, Diego Diniz. Precedentes em matéria tributária e o novo CPC. In: Paulo César Conrado. (Org.). Processo Tributário Analítico. São Paulo: Noeses, 2016, v. III, p. 111-140.
[6] Julgado como recurso paradigmático, nos termos do RICARF.